domingo, 12 de julho de 2009

“Falta uma porta de saída para não continuarmos nas ruas"

“Falta uma porta de saída para não continuarmos nas ruas"



Divulgação

Robson César Correia de Mendonça

Depoimento de Robson César Correia de Mendonça, coordenador geral do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, concedido à Viva o Centro para a série especial "Enfrentando a tragédia que é morar na rua".



Vítima de violência



Cheguei em São Paulo em 1999 e fui vítima de um seqüestro relâmpago. Fiquei sem nada. Perdi todos os meus dentes e passei a morar na rua. Por conta de toda a violência que sofri, abri um processo contra o Estado. Dez anos depois, esse processo ainda tramita na Justiça Federal.



Depois do sequestro, fui encaminhado pela Polícia Militar a um albergue noturno de Santo Amaro, onde dormi por um tempo, mas como vivi no Sul do país, para mim morador de rua era bêbado, vagabundo, pessoa que não tinha serventia. Custou para acreditar que estava naquela situação. Eu não me aceitava.



Dormi em alguns albergues, mas percebi que não tinha futuro continuar ali e seguir regras, muitas vezes absurdas, ser mal alimentado, dormir mal, ser humilhado, e resolvi dormir definitivamente na rua.



Na rua eu tinha um pouco mais de liberdade, não tinha que cumprir horários, não tinha ninguém para me encher o saco, dizendo que tinha que pegar fila para isso, para aquilo.



Quando resolvi sair dessa situação, tinha apenas um dinheiro para alugar um cômodo em um cortiço. Pedi colchões e cobertores em um albergue. Fui falar com o serviço social que precisava de uma cesta básica, porque o dinheiro que tinha já era para pagar o outro mês do aluguel, mas disseram que eu não tinha direito.



Quase tive que voltar para o albergue, mas tinha que resistir. Ia ao mercado público e pegava frutas e verduras que ficavam amassadas para comer, não queria voltar para o albergue. Ainda não tenho salário fixo, vivo de venda de latinhas e papelão e pago meu aluguel.



Perfil do morador de rua



Geralmente chamam o morador de rua de mendigo. Mendigo é quem vive na mendicância, não estou dizendo que não viva na mendicância, mas o morador de rua não esmola, pode esmolar para bebida, mas para comida ele vai em portas de restaurantes. Não fica pedindo dinheiro.



Nós precisamos entender que temos o morador de rua que vive na rua e não quer sair das ruas, existem aqueles que estão em situação de rua que moram em albergues, abrigos, moradias provisórias, hotéis sociais, cortiços; eles estão ali, mas a qualquer momento podem voltar para as ruas. Temos também os trecheiros, que são aquele que hoje está aqui, amanhã na Bahia, Rio de Janeiro, e depois volta para cá novamente.



Nós temos nos albergues uma grande quantidade de ex-presidiários, que saíram dos presídios, e por não existir uma política para eles, acaba indo para os albergues, pois não tem inclusão na família, no mercado de trabalho.



Nós temos as pessoas que vêm da periferia, que por não ter dinheiro para pagar a passagem para voltar do Centro para suas casas acabam procurando os albergues e vão para casa só nos fins de semana. Isso dificulta muito para outros moradores de rua que vêm de outras cidades para cá e não têm vaga. Existem 38 albergues em São Paulo, 6 mil leitos e 19 mil moradores de rua, é muito complexo.



Nós temos uma grande parcela de moradores de rua com problemas mentais e alcoólatras. As pessoas bebem porque se vêem sem nada e entram em desespero. As pessoas procuram o álcool para se esconder da realidade que estão. Você encontra geralmente o morador de rua com um litro de cachaça e outros drogados. E não tem ninguém para estender a mão e tirar ele da situação que está.



O Município e o Estado não oferecem condições para a pessoa recuperar a auto-estima. Acham que um prato de comida e uma cama são suficientes para o morador de rua. Isso é apenas suficiente para a ONG que trabalha com isso, pois ganha por cada pessoa que entra, mas para o morador de rua não.



Existem moradores de rua que fizeram faculdade de direito e passaram no exame da OAB, outros se formaram em jornalismo, medicina. Lá em Pernambuco teve aquele jovem que dormia nas ruas e passou em um concurso público para o Banco do Brasil. Nós tivemos vários casos de vencedores da rua, mas são pessoas que venceram com muita dificuldade.



Experiência em albergue



Percebi que os albergues eram simplesmente depósitos humanos e até hoje têm essa característica. A pessoa chega e os funcionários apenas perguntam de onde você veio, o que veio fazer e quanto tempo vai ficar. Depois dizem a que horas você tem que sair e se não cumprir essas regras é desligado.



Tinha tolerância de pertences. No maleiro deveria ter apenas duas calças, duas camisas, um par de sapato. Quem tivesse a mais de bagagem tinha que dispensar o excesso. Não podíamos ter quase nada.



Nós escutamos que o morador de rua não quer ir para o albergue porque não pode beber, usar drogas, e não quer tomar banho. Tudo isso é mentira. Dentro do albergue, eu cansei de ver pessoas bebendo e usando drogas, não tem ninguém para fiscalizar. Quando um monitor pega usando drogas ou bebidas ele bota para fora.



Organizando-se



Um dia uma assistente social conversou comigo. Ela estava assumindo o albergue de Santo Amaro e tinha formado um grupo de auto-ajuda. Eu e outros colegas passamos a interagir com esse grupo que se reunia no albergue quase todas as noites. Fazíamos terapia em grupo, cada um contando quem era. A gente falava das nossas perspectivas de vida e isso me deu ânimo. Depois eu me mudei para o Centro.



No Centro, nos juntamos com o pessoal dos albergues Arsenal da Esperança, Ligia Jardim e Jacareí. Demos início a um movimento para lutar pelos nossos direitos. Na época, ele se chamava Movimento de Esperança do Povo da Rua. Trabalhamos nisso.



Alguns companheiros achavam que formar um movimento resolveria tudo, que a gente iria melhorar de vida do dia para noite, porque nós tínhamos uma lei, a 12.316. Nós nos informamos sobre ela e realizávamos palestras na Câmara e na Assembléia Legislativa.



Lei 12.316



A 12.316 é uma lei da Aldaíza Sposati. Sancionada pela Marta Suplicy e complementada pelo Decreto 4232.



A lei dá garantias à população de rua. Diz como as pessoas têm que ser tratadas, quais são as obrigações do município para com a população de rua. Diz que o município tem que dar albergues com capacidade para 100 pessoas cada um, ter assistente social para dar encaminhamento para documentação, cursos profissionalizantes, emprego e contato com a família. Se essa lei fosse cumprida não teríamos esse aumento considerável da população de rua.



Fala-se sobre maleiros para guardar pertences, banheiros públicos e refeitórios comunitários para a população de rua. Tudo isso está na lei, que nunca foi cumprida, a não ser pela criação do Refeitório Pena Forte Mendes, próximo à Praça 14 Bis. É um restaurante comunitário da população de rua, que dá café, almoço e janta. É mantido por um convênio entre a Prefeitura e algumas entidades, mas a demanda da população de rua é muito grande, então é impossível caber todo mundo ali.



Por não cumprir a lei de abrigar apenas 100 pessoas, os albergues que têm menos recolhe até 450. Geralmente são três monitores, como esses monitores fiscalizam essas 450 pessoas? Por esse motivo acontecem infrações dentro dos albergues, e muitas vezes, aquele funcionário é despreparado para tratar o morador de rua.



Criam-se certos atritos entre funcionário e usuário. Para que isso melhore é preciso cumprir a lei. Você acha que um lugar com 1.150 pessoas, como o Arsenal da Esperança, todo mundo se conhece? Na tem condições. O sujeito chega no albergue, toma o banho dele, janta e vai se deitar. De manhã acorda, toma café e vai para rua. Ninguém pergunta se tem um documento, se precisa de um, se tem capacitação profissional para enfrentar o mercado de trabalho, não sabem como está seu estado de saúde físico e psíquico.



Programas que já foram criados



A Secretaria (Smads-Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social) fala em 12 mil pessoas na rua, mas nós sabemos que hoje a população de rua chega a 19 mil, isso em dados concretos. O último senso em São Paulo é do ano 2000, a lei diz que deve ser feito de dois em dois anos.



São várias irregularidades administrativas por causa do descumprimento da lei, que faz com que a população de rua cresça e muitas entidades se aproveitem para ganhar em cima do morador de rua. Isso é uma realidade que a gente sabe muito bem.



O morador de rua é pago por cabeça. Tempos atrás, foi criado o X Rua, um sistema que controlava a entrada e a saída do morador de rua nos albergues. Então o camarada chegava na cidade, ia para o albergue e depois de cadastrado, era jogado automaticamente no X Rua. Assim a Smads saberia onde está fulano e quanto aquela entidade iria receber por ele, mas acontece que muitas entidades mandavam a pessoa embora e não retiravam o nome dela do sistema, e esse usuário passava a freqüentar outra entidade e a entidade passava a receber pelo mesmo.



O município pagava duas vezes pela mesma pessoa, então o X Rua foi muito falho. Tivemos também as Kombis do São Paulo Protege. Eu chamava isso de marketing para gringo, porque elas ficavam paradas em determinados cantos cadastrando, mas não protegiam ninguém. Era apenas uma Kombi para transportar o morador de rua ao albergue. Diziam que a Kombi tinha um atendimento especial, mas não tinha atendimento especial nenhum.



Humilhação



Fatores como esses são muito desgastantes para a população de rua. Por exemplo, quando chega o inverno e vem a chamada frente fria, está na lei que a Prefeitura tem obrigação de recolher todas as pessoas que estejam dormindo nas calçadas em situação de miséria. Então a Prefeitura abre vagas a mais nos albergues para levar mais gente.



É desgastante e humilhante ficar das 14h até 21h, ou 22h, em uma fila esperando um assistente social, um monitor para fazer o cadastro para entrar na Kombi. Esta aparece só por volta da meia-noite e só sai para o albergue quando estiver lotada, e isto depois de descobrir em qual albergue tem vaga. A essas alturas já são 2h ou 3h da madrugada. Levam essa pessoa para lá e ela tem que sair às 6h da manhã. Não dorme nada. Chega, tem que tomar banho, comer alguma coisa, preencher ficha. Terá de acordar às 5h da manhã para as 6hs voltar para rua. Não dá.



Eu conheço pessoas que nasceram, casaram, tiveram filhos e netos na praça e, de repente, foram para um albergue. Na praça não tem banheiro público para ele puxar descarga, não tem papel higiênico. Então elas chegam ao albergue, fazem as necessidades em qualquer lugar e vão embora. O funcionário, despreparado, xinga, e o morador de rua não gosta, pois tem pavio curto por conta de toda violência da rua.



Questiona-se muito do morador de rua por fazer suas necessidades nas portas das loja e dormir nas ruas, mas não tem cama suficiente para todo esse pessoal nos albergues e não tem banheiros públicos.



Quantos banheiros públicos têm no Centro de São Paulo? Não têm. Se colocassem banheiro público e falassem para o morador de rua que se ele for pego fazendo nas ruas vai ser penalizado – não precisa prender –, mas terá que lavar, varrer, deixar brilhando, resolve, ele não vai fazer de novo. Sem banheiro público vai cobrar o quê?



Projeto Quadrangular



Entregamos ao Floriano Pesaro, quando ele era gestor da Smads, o Projeto Quadrangular que o movimento criou, que daria uma porta de saída para o morador de rua. O albergue é uma moradia provisória, mas a pessoa acaba ficando em uma rotatividade de albergues. Sai de um e vai para outro. Não tem uma porta de saída.



No nosso projeto, daríamos um direcionamento e uma capacitação à população em situação de rua. Nos albergues encontram-se pessoas com deficiência física, deficiência mental, idosos e jovens. Resolveria se fossem criadas comunidades terapêuticas para portadores de problemas mentais, outro tipo de comunidade para pessoas com deficiência física e outra, ainda, para idosos. As pessoas teriam livre acesso para entrar e sair, acompanhamento de assistente social e de enfermeiros. Tudo isso sem muito custo para o Município e para o Estado. Os moradores de rua têm direito à Loas-Lei Orgânica da Assistência Social (que garante atendimento às necessidades básicas de pessoas em situação de miséria), ao PBC-Plano de Benefício Continuo (benefício para pessoas com necessidades físicas e mentais). Outros moradores de rua têm aposentadoria e muitos, ainda, têm pensão. De uma maneira ou de outra isso garante uma renda.



Por que não criar uma comunidade terapêutica onde eles possam ter uma alimentação melhor e com cada um contribuindo para isso? Quando você tem sua casa, você tem que pagar aluguel, luz. Muitos concordariam, mas o governo não pensa dessa maneira. Prefere pagar para uma entidade tomar conta, do que criar uma comunidade terapêutica.



Para os jovens de 18 até seus 30 anos haveria uma comunidade que daria capacitação profissional e encaminhamento para o mercado de trabalho por meio de programas que o próprio governo tem. Aqueles entre 35 e 50 anos, poderiam participar de cooperativas, mas não só de reciclagem. Poderiam fazer sabonetes, enfeites, pintar um guardanapo, qualquer meio de ganho. E criar feiras onde poderiam vender seus trabalhos e ter a sua arrecadação até arrumar algo fixo.



O que precisa é política pública eficaz, o governo precisa fazer a parte dele, temos uma lei bem feita, mas que nunca foi cumprida. No momento em que se cumprir a lei, em que se resgatar a dignidade dessa população, aí sim será resolvida a questão.



Cidadania



O movimento realizou no dia 21/4 o evento Cultura e Cidadania (evento que aconteceu na Praça da Sé com atividades direcionadas aos moradores de rua). Nós tivemos 432 cortes de cabelo, 213 documentos retirados pelo Poupatempo, 162 encaminhamentos médico, 76 encaminhamentos jurídico, 202 serviços de manicure, 70 tiragens de fotos, 12 registros de nascimento encaminhados, 213 encaminhamentos para cursos profissionalizantes e 23 encaminhamentos para trabalho. Tudo isso foi possível com a ajuda dos parceiros. A Prefeitura tem mais condições do que nós, do movimento, de fazer essas coisas, porque nós temos que pegar vários parceiros e às vezes quando você coloca um projeto, eles olham que é ex-morador de rua e ficam com medo de investir.



A maneira mais fácil, prática e eficaz para resolver a questão da população de rua de São Paulo é cumprir a lei. Criar porta de saída por meio de trabalho, primeiramente da saúde. Ver aqueles que estão aptos para trabalhar e colocar no mercado de trabalho; são poucos, mas tem. Criar essas alternativas, como comunidades terapêuticas para desafogar esses depósitos de seres humanos que são os albergues, criar um trabalho específico para os jovens que estão nos albergues, e para aqueles que não são jovens nem velhos, criar cooperativas e outros meios de ganho para recuperar a auto-estima deles.



O morador de rua não quer só um prato de comida e uma cama, quer reaver a auto-estima que perdeu quando perdeu sua família, sua casa, quando foi para a rua e foi para o albergue e o Município e o Estado não lhe deram amparo necessário.



Atuação Cultural



O movimento trabalha com afinco na área da cultura. Todo ano tem Concurso de Poesia, Caça Talento, História da Minha Vida. Estamos planejando para o mês de junho um evento dois em um, o Concurso de Poesia com Caça Talento. O tema vai ser “O que é a rua é para mim”. Depois faremos a História da Minha Vida, convidando o morador de rua a escrever o que o levou a morar na rua, em albergue, o que ele sugere como saída da rua e do albergue. Isso a gente faz todos os ano. Por meio desses concursos um participante do “Caça Talento” criou até uma música para um apresentador de televisão da Record. Vários moradores de rua se empregaram através da cultura.



Por meio da cultura conseguimos inserir a pessoa no mercado de trabalho e na família, pois se nós olharmos o começo da humanidade, tudo vem da cultural. Foi a partir desse pensamento que fundamos o movimento.

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